De autoria de mais de 100 experts em leucemia mieloide crônica, entre eles cinco brasileiros, manuscrito discute perspectivas referentes à gestão de custos despendidos à terapêutica da doença e os impactos na qualidade de vida dos pacientes
Com o objetivo de trazer à discussão o crescente aumento nos custos de medicamentos para leucemia mieloide crônica (LMC) e o impacto no tratamento de pacientes em todo o mundo, mais de 100 especialistas de mais de 15 países nos cinco continentes, incluindo o Brasil, redigiram em conjunto o artigo “Price of drugs for chronic myeloid leukemia (CML), reflection of the unsustainable cancer drug prices: perspective of CML Experts”, publicado online em 25 de abril, na revista Blood, (fator de impacto 9.8), periódico científico de referência mundial em hematologia da Sociedade Americana de Hematologia (ASH, na sigla em inglês),
O manuscrito ingressou na nova seção da publicação, denominada Blood Forum Article, um espaço destinado à apresentação de opiniões sobre temas controversos de interesse científico e prático do campo da hematologia, com a finalidade de repercutí-los entre a comunidade mundial. Sob a coordenação de Hagop Kantarjian, diretor do Departamento de Leucemia da University of Texas MD Anderson Cancer Center (Houston), a análise tem a participação dos hematologistas brasileiros Carmino Antonio de Souza presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) e professor titular da Universidade Estadual de Campinas; de Israel Bendit (Faculdade de Medicina – USP); de Nelson Spector (Universidade Federal do Rio de Janeiro); Nelson Hamerschlak (Hospital Israelita Albert Einstein) e Ricardo Pasquini (Hospital de Clínicas – Universidade Federal do Paraná).
No artigo, os especialistas trazem um alerta à comunidade médica, às esferas governamentais, à indústria e todos os agentes envolvidos na terapêutica da doença, para a situação vivenciada no mundo. “A união de países na composição deste manuscrito tem por objetivo trazer à reflexão um tema crucial na terapêutica da LMC, que são os custos dos medicamentos e de que forma isso impacta na qualidade de vida e sobrevida dos pacientes. Nosso intuito é vencer o desafio de baixar os valores e acreditamos que uma maneira seja estabelecendo um mecanismo moderador para que estes remédios sejam ofertados sem quebrar os sistemas de saúde, os pacientes ou as instituições que cuidam destes pacientes”, relata Carmino Antonio de Souza.
Para se ter uma ideia, os custos chegaram a níveis insustentavelmente altos nos Estados Unidos, o que tem afetado a continuidade do tratamento, já que a maioria dos pacientes não possui condições financeiras de arcar com os cuidados. Dos 12 medicamentos para câncer aprovados pelo FDA em 2012, 11 equivalem a um preço superior a cem mil dólares/ano. Além disso, os preços dos medicamentos duplicaram em relação à última década – de 5 mil dólares para 10 mil dólares. No Brasil, os medic amentos podem chegar a ter custos de até 200 mil / 300 mil dólares por ano. “E, por serem custos individuais, quando projetados a um número maior de pacientes, o montante final é um valor quase inviável a qualquer sistema de saúde”, avalia Souza.
Os pesquisadores apontam que com a revolução de drogas no cenário da LMC, os pacientes passaram a viver por mais tempo. A mortalidade de LMC em dez anos era superior a 85-90% e, hoje, essa estatística se inverteu. Estes indicadores – 85%-90% – são de pacientes reestabelecidos e com qualidade de vida. No Brasil, há de oito a nove mil pacientes com LMC utilizando inibidores de tirosina quinase. Destes, aproximadamente dois mil em segunda geração, e os custos estão sendo assumidos pela sociedade. Até aí, Souza explica não haver nada de errado, exceto que os custos têm se tornado altos a ponto de “quebrar” governos.
Souza explica que a escolha da LMC como alvo da análise se deve a fatores como a situação vivenciada pelos países, em especial Estados Unidos, Canadá e Europa ocidental, locais em que a introdução de novas drogas são liberadas com mais rapidez pelas agências reguladoras (FDA; EMEA), com base nos altos níveis de evidência científica dos fármacos, consideradas incontestáveis. Outro aspecto se deve ao fato de a LMC ser considerada um modelo dentro da oncologia, por ter aberto “uma estrada quilométrica e larga no tratamento-alvo”, por meio da utilização dos inibidores de tirosina quinase. “Hoje, doze anos depois da introdução do imatinibe (primeira geração), deparamos com remédios novos, de segunda e terceira geração, mais seletivos e potentes, porém, com custos insuportáveis”.
Segundo o pesquisador, cada suscedânio do imatinibe – o nilotinibe, depois o dasatinibe, o ponatinibe, e outras drogas que se seguem, vem agregando custos cada vez mais insuportáveis. “Não podemos deixar isso sob a lei de mercado. São drogas cuja pesquisa e desenvolvimento acarretou elevados gastos, e um custo de tratamento individual muito alto”, avalia. Contrário à quebra de patentes, Souza defende que drogas de grande interesse para a humanidade poderiam ser reguladas por meio de órgãos multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), além de talvez adquirirem moléculas importantes e remunerar os laboratórios sem inibir a inovação.
Em complemento, o pesquisador Nelson Hamerschlak ressalta ainda outras questões, como o aparecimento de genéricos também a preços altos. Na Índia, os mesmos medicamentos chegam a ter valores muito menores. “Se tirarmos os custos de desenvolvimento em pesquisas, de responsabilidade da indústria, primeira a lançar o medicamento, nada justifica os preços dos genéricos”, avalia.
“Primum non noncere”, um dos princípios da medicina descritos no Juramento de Hipócrates, que em português significa “primeiro não fazer mal”, é considerado de grande valia pelos autores, tendo em vista que, na LMC, o uso de inibidores de tirosina quinase são drogas orais, em geral bem toleradas, ou seja, não causam danos aos pacientes.
Com exceção das doencas infecciosas, a medicina de hoje “paga” para retardar a evolução natural das doenças (pay for delay). Isso acontece com a LMC – provavelmente os inibidores de tirosina quinase não curam a LMC, entretanto o paciente viverá por toda a vida com uma doença crônica, em vez de fatal, se tiver acesso ao tratamento adequado, como um doente com diabetes que usa a melhor insulina. “Hoje a medicina moderna, particularmente a oncologia, trabalha muito nesse sentido de qualidade de vida. Há várias doenças crônicas degenerativas que encaramos dessa maneira, como hipertensão, diabetes, tumores, e com a LMC não é diferente”, pontua Carmino de Souza.