Novas diretrizes para a triagem de pacientes portadores de esclerose sistêmica que podem beneficiar-se de transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) como opção terapêutica foram apontadas em artigo publicado na revista The Lancet (online), em 28 de janeiro, por pesquisadores da Northwestern University (Chicago, IL, EUA), sob a coordenação de Richard Burt e, no Brasil, por Belinda P. Simões, Maria Carolina Oliveira, Daniela A. Moraes, e pelo professor Júlio César Voltarelli (in memoriam), do Centro de Terapia Celular do Hemocentro de Ribeirão Preto, um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).

De acordo com as pesquisadoras brasileiras, por meio de análise retrospectiva de 90 pacientes com esclerose sistêmica difusa ou limitada e doença intersticial pulmonar, sendo 31 acompanhados no serviço brasileiro por meio de protocolo no período de novembro de 2002 a julho de 2011, concluiu-se que pacientes portadores de esclerose sistêmica, mas com comprometimento cardíaco grave, apresentam mau desempenho pós-transplante, o que os torna inelegíveis a esta terapêutica. No período observou-se que a sobrevida nos transplantados foi de 78% em cinco anos (depois de oito mortes relacionadas a recaídas) e a sobrevida livre de recidiva foi de 70% em cinco anos.

A pesquisa sugere que para alcançar os melhores resultados com o TCTH em portadores de esclerose sistêmica é necessário realizar uma série de exames, que devem incorporar ecocardiograma, cateterismo cardíaco e ressonância magnética cardíaca. “Estas avaliações, apesar de serem dispendiosas, demoradas e, no caso do cateterismo, invasivas, evitam a inclusão de pacientes graves demais. É possível ainda que todo este esse conjunto de avaliações seja exagerado, mas só futuros estudos poderão nos dar esta resposta”, pondera Maria Carolina.

Em conclusão, os pesquisadores verificaram que esta é uma precaução a ser considerada pela comunidade científica mundial como forma de reduzir a toxicidade do transplante, pois comprova a importância da avaliação na prática, por conta do grande número de pacientes envolvidos. Também mostra que a gravidade de uma doença nem sempre justifica a realização de procedimentos de alto risco. Observações semelhantes já haviam sido divulgadas por alguns autores com a proposição de que os pacientes com a doença deveriam passar por uma avaliação cardíaca detalhada pré-transplante.

Embora ainda considerados experimentais, os transplantes têm se consolidado como terapia eficaz para controlar doenças autoimunes, como a esclerose sistêmica. A patologia afeta a pele, o trato gastrointestinal, os pulmões e o coração. As alterações cardíacas podem ser de motilidade e causar arritmias. Tais alterações são muito pouco sintomáticas ou completamente assintomáticas. O transplante emprega drogas tóxicas para o coração, como a ciclofosfamida, além de provocar sobrecarga cardíaca pelo uso de grandes volumes líquidos. Essa associação de transplante com doença cardíaca prévia parece aumentar o risco do procedimento, além de deteriorar a função cardio-pulmonar pós-transplante.

Para se ter uma ideia, em casos graves da doença a taxa de mortalidade pode chegar a 50% em cinco anos. A melhor terapia convencional disponível, com pulsos de ciclofosfamida, só consegue evitar a progressão da doença em uma pequena parcela de pacientes. Assim, o transplante pode diminuir a mortalidade da doença, sobretudo com base nesta nova diretriz, que exclui pacientes com quadro cardíaco já avançado. “O transplante é uma terapia agressiva, mas que ocorre de uma só vez, ao contrário dos pulsos de ciclofosfamida, que são mensais e duram anos, provocando náuseas, vômitos, queda de cabelos, infertilidade. O transplante como tratamento único pode contribuir muito para a qualidade de vida dos pacientes”, relata Carolina.

Por fim, o transplante apresenta um efeito marcante sobre a pele desses pacientes. O paciente, que inicialmente apresenta uma pele endurecida, aderida aos planos profundos e limitando os movimentos, recupera grande parte da elasticidade da pele e da mobilidade articular após o transplante.

Perspectivas promissoras

O estudo continua ativo, e hoje Ribeirão Preto tem mais de 45 pacientes com esclerose sistêmica já transplantados. Com base nas conclusões apontadas, os pesquisadores programaram um novo protocolo, agora com a inclusão apenas de pacientes que não apresentem problemas cardíacos.

“Especialmente na esclerose sistêmica, quando o curso da doença é mais agressivo, não há um tratamento adequado até este momento. É uma doença com poucas opções terapêuticas, assim o fato de haver alternativa para parar a progressão da doença é um benefício enorme para os pacientes”, relata Belinda P. Simões.

Pacientes com a doença em fase inicial em geral não possuem contraindicações para o transplante, o que possibilitará aos pesquisadores observar melhor o controle da doença, evitando sua progressão. “Esperamos assim diminuir a mortalidade associada ao transplante e, talvez, observar menos mortes por progressão da doença”, conclui a médica.

Ribeirão Preto tem um dos centros com maior número de pacientes transplantados para doenças autoimunes do país. Reconhecido por sua qualidade e experiência, o Centro de Terapia Celular do Hemocentro de Ribeirão Preto atrai o interesse de pesquisadores americanos e europeus em realizar estudos cooperativos com o Brasil.

Versão definitiva e homenagem 

Em fevereiro, possivelmente na primeira quinzena do mês, a versão definitiva do artigo será publicada na versão impressa do periódico The Lancet. Para Belinda P. Simões, ter um estudo publicado na segunda maior revista de medicina geral do mundo, atrás apenas do The New England Journal, representa um grande reconhecimento da comunidade científica nas pesquisas desenvolvidas no Brasil.

Ainda na referida edição será publicado um obituário em memória do pesquisador e professor Júlio César Voltarelli, que morreu em março de 2012, aos 63 anos, deixando um vasto legado no campo da ciência, em especial, nos transplantes de células-tronco para doenças autoimunes no Brasil e nas pesquisas com ênfase em esclerose múltipla e sistêmica.