Confira entrevista na íntegra com o coordenador do Comitê de Glóbulos Vermelhos e do Ferro da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), Rodolfo Cançado, sobre o exame doppler transcraniano (DTC) para prevenção primária de acidente vascular encefálico (AVE) em pacientes com doença falciforme:
Hemo em revista – Qual a importância da Portaria nº 413/2013?
Rodolfo Cançado: Há mais de trinta anos, os segmentos sociais organizados de homens e mulheres negras no Brasil vêm reivindicando o diagnóstico precoce e um programa de atenção integral às pessoas com doença falciforme (DF). O primeiro passo rumo à construção de tal programa foi dado com a institucionalização da triagem neonatal no Sistema Único de Saúde, por meio da Portaria do Ministério da Saúde de 15 de janeiro de 1992, com testes para fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito (fase 1). Em 2001, mediante a Portaria nº 822/2001 do Ministério da Saúde, foi criado o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), incluindo a triagem para as hemoglobinopatias (fase 2).
A publicação foi uma grande conquista para as pessoas com doença falciforme?
A inclusão da eletroforese de hemoglobina nos testes de triagem neonatal representou um passo importante no reconhecimento da relevância das hemoglobinopatias como problema de saúde pública no Brasil, e também o início da mudança da história natural da doença em nosso País. Ao incluir a detecção das hemoglobinopatias no Programa Nacional de Triagem Neonatal, essa Portaria corrigiu antigas distorções e trouxe vários benefícios. Sobretudo a restauração de um dos princípios fundamentais da ética médica, que é o da igualdade, garantindo acesso igual aos testes de triagem a todos os recém-nascidos brasileiros, independentemente da origem geográfica, etnia e classe socioeconômica. Configurando uma fase de consolidação dessa iniciativa, em 16 de agosto de 2005 foi publicada a Portaria nº 1.391, que institui, no âmbito do SUS, as diretrizes para a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias.
No momento, o Ministério da Saúde, por meio da Coordenação Geral da Política Nacional de Sangue e Hemoderivados, vem trabalhando na regulamentação e implantação das medidas estabelecidas pela Portaria nº 1.391, bem como na organização da rede de assistência às pessoas com doença falciforme em todos os estados da União.
Os avanços no conhecimento de novos aspectos moleculares, celulares e clínicos, bem como o diagnóstico precoce e a prevenção e/ou tratamento de complicações agudas e crônicas da DF possibilitaram significativa melhora do prognóstico, ou seja, os pacientes estão vivendo mais e melhor. Um desses avanços se refere à prevenção primária do acidente vascular encefálico (AVE). O AVE é sempre uma complicação neurológica grave e importante causa de morbidade e mortalidade precoce em crianças, adolescentes e adultos. A incidência de AVE em pacientes com DF é de 8% a 10 %, ou seja, em crianças sem DF a incidência de AVE é de 3 casos/100.000 pacientes/ano), enquanto que em crianças com DF essa taxa é de 600 a 1.000 casos de AVE/100.000 pacientes/ano. O primeiro evento agudo ocorre mais frequentemente na primeira década de vida (entre três e 10 anos de idade, com média de ocorrência de 7,7 anos).
Quais são os estudos recentes sobre o assunto?
STOP (Stop Prevention in Sickle Cell Disease) I (1998) é um estudo que possibilitou a identificação de crianças com maior chance de evento encefálico agudo e reduziu a ocorrência de acidente vascular encefálico de 10% ao ano para menos de 1%. Além disso, o pronto diagnóstico e tratamento do AVE com regime regular de transfusão de hemácias reduziu o risco de recorrência de novo AVE agudo em 92%. O estudo STOP II (2005) avaliou crianças com ressonância nuclear magnética normal e que obtiveram normalização do doppler transcraniano com transfusão regular de hemácias. Parte dessas crianças continuou o regime de transfusão e a outra parte não recebeu transfusão de hemácias de maneira regular. Após dois anos de acompanhamento, observou-se que 35% das crianças não transfundidas voltaram a apresentar elevado risco de AVE agudo por alteração do doppler transcraniano, e duas crianças apresentaram novo AVE, enquanto no grupo de pacientes mantidos com transfusão não houve nenhum AVE. Esse estudo, que teve sua conclusão antecipada, demonstrou que não é seguro parar as transfusões em crianças com elevado risco para AVE, concluindo, portanto, que as transfusões devem ser mantidas indefinidamente nesse grupo de pacientes.
Mas como identificar as crianças com risco elevado de AVE antes do primeiro evento agudo?
A identificação dos pacientes com risco para AVE pelo uso do DTC constituiu-se no maior desafio e também no maior avanço do ponto de vista de prevenção primária. O doppler transcraniano passou a fazer parte do arsenal diagnóstico com inegáveis benefícios no esclarecimento e acompanhamento de doenças neurológicas, principalmente as cerebrovasculares. O DTC é capaz de detectar estenoses arteriais intracranianas em pacientes com DF sem sintomas ou sinais neurológicos. Dessa forma, passou a constituir-se no exame de escolha para identificar quais as crianças com risco aumentado para o primeiro evento cerebrovascular agudo e que devem ser tratadas profilaticamente com terapia transfusional crônica. O risco de AVE em crianças com velocidade de fluxo sanguíneo cerebral pelo DTC maior que 200 cm/s é de 10% ao ano, enquanto que para aquelas com velocidade normal (< 170 cm/s), o risco é de menos de 1%.
Qual a vantagem de haver o doppler transcraniano como procedimento ambulatorial na prevenção do acidente vascular encefálico em pessoas com DF?
O DTC é um exame não invasivo, relativamente simples e que possibilita identificar os pacientes com elevado risco de AVE antes mesmo do primeiro evento agudo e, portanto, é capaz de prevenir uma das complicações mais graves da DF.
Qual a diferença entre doppler transcraniano convencional e doppler transcaniano por imagem?
O DTC convencional é o método de escolha para a prevenção primária do AVE em portadores de DF, e o exame deve ser realizado e interpretado de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo STOP. As técnicas de DTC por imagem não foram investigadas nos estudos STOP, entretanto, vários serviços têm utilizado o DTC por imagem. É importante que o profissional médico leve em consideração possíveis diferenças de velocidades citadas na literatura com esse método. Recomenda-se que o método empregado (DTC convencional ou DTC por imagem) deva ser citado no relatório de resultado do exame.
Quais são os estados e cidades que estão capacitados para esse tipo de procedimento? Haverá necessidade de capacitação de profissionais?
Serviços e instituições de vários estados e cidades já realizam o DTC em suas rotinas, mas diante dos fatos mencionados anteriormente, é de fundamental importância que o Ministério da Saúde, por meio de seus órgãos competentes, viabilize a aquisição de equipamentos de doppler para todos os estados da União, priorizando aqueles com maior incidência de DF, bem como viabilize o treinamento e capacitação de profissionais médicos competentes para a realização desse exame neurológico, a fim de identificar as crianças com risco elevado de AVE e prevenir a ocorrência dessa frequente e catastrófica complicação em pacientes com DF.
Conclusão do especialista
O diagnóstico e tratamento precoces comprovadamente aumentam a sobrevida e melhoram a qualidade de vida dos portadores de DF. Contudo, a consecução desses objetivos está diretamente relacionada à organização da rede de assistência aos portadores de DF em todos os estados da União, por meio da formação de centros de referência especializados capazes de oferecer atendimento global, multidisciplinar e multiprofissional. Nesse sentido, o desenvolvimento de políticas públicas e de outras ações que considerem os aspectos socioeconômicos e culturais, e as questões assistenciais relacionadas à DF, assim como o comprometimento dos órgãos de saúde competentes, dos profissionais de saúde e das entidades representantes dos pacientes, são fatores fundamentais e determinantes para a melhora da atenção aos portadores de DF.
As Diretrizes Brasileiras para o Uso do Doppler Transcraniano em Crianças e Adolescentes Portadores de Doença Falciforme inserem-se dentro desse contexto, caracterizando-se por uma iniciativa que teve a colaboração dos principais especialistas nas áreas de diagnóstico e tratamento da DF, com a participação de responsáveis por órgãos de saúde pública, sociedades médicas de abrangência nacional, e a presença de representantes de entidades de apoio aos portadores de DF. Além disso, o desenvolvimento das Diretrizes caracterizou-se pela inclusão de participantes de diversas regiões do País e com atuações em diferentes segmentos de atenção à saúde, de forma a maximizar a possibilidade de aplicação universal e irrestrita dessas Diretrizes. A adoção das Diretrizes Brasileiras para o Uso do Doppler Transcraniano em Crianças e Adolescentes Portadores de Doença Falciforme poderá resultar em redução do risco de desenvolvimento de AVE nessa população de doentes, conforme demonstrado pelas evidências científicas, contribuindo para diminuir a morbidade e mortalidade e para a melhora da qualidade de vida dos pacientes com DF.