Patologia negligenciada

(Acesse a nota desde o início em Hemo em revista 23 – página 63)

“O governo brasileiro cobre razoavelmente bem o Transplante de Medula Óssea (TMO), mas negligencia o paciente com Leucemia Mieloide Aguda (LMA).” A declaração partiu do pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Márcio Nucci, em entrevista concedida à equipe de reportagem da Hemo em Revistanº 22, para a reportagem da editoria “Panorama” (leia aqui).

Em parceria com Nucci, o professor titular da disciplina de infectologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1A, Arnaldo Colombo, desenvolveu estudo multicêntrico com oito hospitais terciários brasileiros, entre 2007 e 2009, em que foi possível detectar que aproximadamente 20% dos 900 pacientes hematológicos (portadores de LMA, receptores de células-tronco) acompanhados por um ano desenvolveram infecções fúngicas.

Embora o Ministério da Saúde contraponha que isso acontece porque o valor pago em um TMO é de R$ 22.968,78, enquanto a diária de uma internação para quimioterapia de leucemias agudas e crônicas é de R$ 562,50, Colombo concorda com a afirmação de Nucci e discorre sobre a condição do paciente com LMA no País. Confira!

Hemo em revista – Como avalia o tratamento de pacientes com infecções fúngicas no País?

Arnaldo Colombo:A questão é: o Sistema Único de Saúde (SUS) não está preparado para atender os pacientes com infecções fúngicas, em especial em câncer. Em primeiro lugar, é importante mencionar que nós – eu e o Márcio Nucci – realizamos um estudo multicêntrico com oito hospitais terciários brasileiros, entre 2007 e 2009, em que foi possível detectar que cerca de 20% dos 900 pacientes hematológicos (portadores de LMA, receptores de células-tronco), acompanhados por um ano, desenvolveram esse tipo de infecção. Boa parte dessas infecções foi causada por aspergillus, com um índice de mortalidade muito alto. Infecções fúngicas são muito prevalentes no nosso meio e pouquíssimos hospitais públicos terciários possuem os recursos necessários para o diagnóstico. Então, é uma condição muito frequente. Os dados estão publicados e comprovam isso. O SUS remunera muito pouco o atendimento de pacientes com LMA e remunera melhor os pacientes de transplante. E aí, o que acontece? O paciente com LMA não fica em quartos com filtro HEPA e é tratado como o ‘primo pobre’ da hematologia, com altíssimo risco de infecção e sem direito a ser internado em um ambiente adequado com proteção. 

Hemo em revista: E em quais centros os pacientes encontram melhores condições?

Colombo:Os pacientes submetidos a transplante alogênicos, de forma geral, estão dentro dessas condições. Os centros que são credenciados para fazer transplante conseguem oferecer este quarto para a maioria dos pacientes, pelo menos para mais de 50% deles. Em relação aos pacientes com LMA, menos de 30% usufruem dessas condições. Então o risco é maior, pois não há estrutura adequada para atender esse paciente. Além disso, é necessário fazer monitorização precoce com biomarcadores para reduzir a mortalidade por esse tipo de infecção. No Brasil, nós temos dois aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): glucana egalactomanana. São dois testes de pesquisa de antígenos de fungos. Os dois fazem seguimento de pacientes de risco, mas pouquíssimos hospitais têm acesso a esses exames e poucos laboratórios de microbiologia conseguem identificar o fungo em gênero e espécie. Então há despreparo, falta estrutura para fazer o diagnóstico e, na cultura para fungos que está disponível, poucos profissionais que podem de fato fazer este diagnóstico acurado. 

Hemo em revista: É possível fazer uma comparação com outros países?

Colombo:Na Europa e Estados Unidos, 30% desses pacientes com LMA estão com filtro HEPA e pressão positiva. E os centros de hematologia tem acesso à estratégia de diagnóstico precoce usando esses antígenos de imagem, ou então eles fazem profilaxia com antifúngicos. Infecção fúngica é uma complicação muito frequente no Brasil, tal qual ou mais do que no mundo desenvolvido, e os hospitais brasileiros não têm recursos para deixar o paciente de risco em um quarto com filtro HEPA e pressão positiva. Fora isso, não temos recursos diagnósticos. São poucos os hospitais com dosagem de galactomannana e glucana disponível, por exemplo, e profissionais que conseguem fazer identificação de fungo ao nível de espécie. Diferentemente da AIDS, hepatite e do próprio câncer, em que temos linhas do governo para acesso a medicamentos de alto custo, pacientes com infecção fúngica invasiva, não são assistidos por esses programas. Eles acabam tendo acesso, basicamente, a medicamentos de baixo custo que foram desenvolvidos há mais de 20/30 anos. Que são limitados ou pela toxicidade, que é o caso daanfotericina B convencional, que tem amplo espectro, mas é muito tóxica para o rim, ou fluconazol, que é uma droga segura, mas tem limite de espectro. Não pega muito dos fungos que infectam os pacientes hematológicos. Então não há programas de acesso a drogas de alto custo para esses pacientes, em particular quando eles estão em casa. Pelas condições atuais, já é difícil oferecer nos hospitais e quando eles vão pra casa então, é impossível.

Hemo em revista: É possível oferecer esse tratamento pelas vias legais, processos judiciais?

Colombo: Às vezes até se consegue, mas faz sentido pautar a assistência à saúde pública por meio de um advogado. E aí o que acontece? Você entra com um processo e até que se consiga chegar à sentença pela ganha da causa, a doença já evoluiu muito. O custo, o que se paga pelo leito do leucêmico, definitivamente compromete pelo menos 500 reais só com a quimioterapia e a estadia do doente, então não sobra dinheiro para se utilizar em recursos diagnósticos e no tratamento adequado. Existe uma droga muito utilizada no mundo todo para profilaxia de antifúngicos nessa população que é oposaconazol, que não está disponível no Brasil. Está em todos os países da Europa, Estados Unidos e vários da América Latina, e no Brasil não. Está em processo de aprovação na Anvisa há muitos anos. O Ministério tem um problema enorme que não está sendo visto pelo radar deles, que são as infecções fúngicas, oportunísticas e endêmicas. Existem vários outros pacientes que estão em risco para infecção fúngicas e o Ministério definitivamente não está com radar em alerta para as complicações, em termos de compromisso da qualidade de vida, sequela e morte, associados às infecções fúngicas. Em relação ao número de pacientes prejudicados, é difícil, em termos globais não tem como saber, teríamos que extrapolar a taxa de infecção que a gente tem. Em um ambiente hospitalar, a cada mil admissões hospitalares, nós temos de um ou três casos de pacientes com candidemia e aspergilose invasiva. O dado que temos é que ao longo de um ano, pós-quimioterapia, quase 20% dos pacientes com leucemia estão desenvolvendo essa infecção.

Saiba mais sobre os assuntos nos artigos publicados:    

www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/22762208

www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23009319